Com as Olimpíadas de Tóquio, os brasileiros tiveram a oportunidade de conhecer e se entreter com inúmeras modalidades esportivas exóticas ao cotidiano do cidadão regular de nosso país, tais como a esgrima, taekwondo, canoagem, hipismo, entre outros. Dentre o calendário olímpico, uma modalidade que se faz presente ao longo de grande parte do evento é o ciclismo, esporte presente nas Olimpíadas desde sua primeira edição, de 1896 em Atenas (isto é, levando apenas em conta os jogos olímpicos da era moderna). Sendo a bicicleta um meio de transporte tão integral ao senso comum esportivo, e também ganhando cada vez mais espaço como um transporte alternativo no ambiente urbano. É interessante revisitar sua origem e conhecer sua curiosa história.
Precursores da bicicleta
Como todas as grandes quebras de paradigma na história, o que chamamos hoje de “bicicleta” (ou “bike”, para os mais descolados) possui inúmeros relatos de origem. Muitos deles contestáveis, outros já desmentidos por acadêmicos, entre outros. Dentre estes relatos quase mitológicos, por assim dizer, dois se destacam, segundo o site Ibike. O primeiro, sendo veiculado supostos esboços de um veículo de quatro rodas ainda no Renascimento, por um intelectual italiano chamado Giovanni Fontana. Este veículo possuiria quatro rodas, conectadas por cordas; mas infelizmente não existem imagens nem descrições mais detalhadas. Outro relato, este já entendido como um boato falso, seria uma espécie de bicicleta primitiva que teria sido desenhada por Leonardo da Vinci.
Avançando na história, outro conto que possui um pouco mais de credibilidade, embora também seja contestada, é a de Comte Mede de Sicrac, que teria criado um aparato chamado de “celerífero”, no séc. XIX. Porém, o que pode ser considerado a primeira precursora da bicicleta e que é atestada historicamente, é a criação da drasiana, ou “máquina corredora”, o primeiro dos velocípedes.
Realizada por Karl von Drais em 1817, se tratava de um aparelho de duas rodas com um banco, sistema de direção e até um freio rudimentar. Von Drais tinha a intenção de apresentar uma alternativa aos cavalos, que demandam dinheiro e atenção constante, fora uma grave estiagem que causou uma grande crise de abastecimento alimentar e o posterior abatimento de inúmeros cavalos. A invenção não possuía pedais, e o usuário precisava manter os pés no chão para impulsionar o veículo. Apesar de uma breve notoriedade, Karl von Drais não conseguiu popularizar sua obra.
O primeiro velocípede com pedais é atribuído a Kirkpatrick MacMillan, um ferreiro escocês, em 1839, porém o mesmo não patenteou a criação e nem deixou desenhos e outros vestígios de seu veículo, o que é motivo de debates entre historiadores. Na década de 1860, o inglês Thomas McCall passou a fabricar velocípedes que seriam semelhantes ao de MacMillan.
Já na França, ainda por volta do mesmo período histórico, Pierre Michaux modificou uma draisiana, criando mais um velocípede com pedais, este tendo mais fama e sucesso que Von Drais e MacMillan. Pierre Lallement, por volta de 1866, patenteou seus velocípedes, embora sem grande sucesso comercial.
Na próxima década, surgem as “bone shakers”, os famosos biciclos que vemos em filmes de época, os quais possuíam os pedais no eixo dianteiro, acompanhados de uma roda muito maior que a traseira. Suas dimensões características se davam devido a constatação de que uma maior roda diretamente ligada em um eixo percorria distâncias maiores com menos giros. James Starley, fundador da Ariel, foi quem obteve maior notoriedade com essa inovação.
Então no final do séc. XIX, após 1880, temos os triciclos, modelos de velocípedes que possuíam três rodas, que foram criadas visando o público feminino, mas também fizeram sucesso entre as classes mais abastadas. Isso porque apesar dos biciclos terem conquistado uma grande popularidade, suas dimensões, ergonomia e propulsão as tornavam potencialmente perigosas, já que, devido aos pedais e a posição do ciclista estarem na dianteira, não era incomum seus usuários serem catapultados para frente em eventuais frenagens bruscas ou até mesmo durante uma desaceleração.
A crescente preocupação com a segurança por parte dos fabricantes nos leva, ainda neste mesmo século, às “bicicletas de segurança”, possuindo duas rodas de mesmo diâmetro, com os pedais entre elas, distribuindo o peso do ciclista entre os eixos. Sua segurança acrescida – ainda mais com a adição dos pneus de câmara a ar por John Boyd Dunlop – e a simplificação de seu processo fabril, as transformaram em um sucesso imediato.
Um símbolo de emancipação e resistência
Não tardou para que os amantes da “magrela” passassem a se reunir e fundar clubes, seja para realizar competições, ou simplesmente para compartilhar do prazer e liberdade de se pedalar por aí. Inclusive, com a crescente participação feminina nestes mesmos clubes, a bicicleta tornou-se um dos ícones dos movimentos feministas da primeira metade do século XX. Muito se dá devido a utilização de calças para a prática ciclista, ao invés de saias, sendo um ultraje às convenções sociais contemporâneas ao período.
Perceba que boa parte dos desenvolvimentos iniciais da bicicleta se deu na Europa (pelo menos, no ocidente). Os Estados Unidos, ao contrário dos países europeus, possui grande extensão territorial, e com os fenômenos de conurbação e diáspora urbana sendo bem menos intensos em relação à segunda metade do séc. XX, e a invenção do automóvel, as ruas americanas passam a ser tomadas por carros. Este modelo de transporte individual é então massificado na Europa após a destruição e crise originados das Guerras Mundiais, impulsionado obviamente pelos pacotes de assistência económica e estrutural estadunidenses e a grande ambição da indústria automobilística yankee.
As bicicletas então passam a ser preteridas em relação aos automóveis, com seu principal público alvo se voltando às crianças, agora sendo vistas mais como aparelhos de lazer, do que como um veículo.
A visão pública passa a mudar nos anos 60. Com a crescente divulgação de trabalhos relacionados à poluição, e a preocupação com o meio ambiente, a utilização de bicicletas passa a se tornar um dos símbolos dos movimentos de contracultura, questionando o American Way of Life, a cultura bélica americana e os padrões sociais do mundo.
Com a ascensão do toyotismo, a terceira revolução industrial transformou o Japão em um polo tecnológico mundial, estendendo a cultura ciclista com o surgimento de fabricantes como a Shimano. O maior cuidado e qualidade na fabricação das bicicletas incentivam então seu uso intenso, tendo na Califórnia um grupo de jovens que gostavam de descer o monte Tamalpais em suas bikes iniciado um movimento que deu origem a prática do mountain bike.
Tempos atuais: o mundo e o Brasil.
A partir dos anos 70, algumas iniciativas relacionadas ao compartilhamento de bicicletas ganham destaque na França e na Alemanha. Com as primeiras frustrações advindas de insegurança, roubo e apreensão de bicicletas, os bicicletários (como conhecemos em nosso país) atingem seu primeiro sucesso na cidade francesa de Lyon, em 1975. Usuários cadastrados poderiam “alugar” uma bicicleta, mediante o pagamento de uma taxa, tendo de devolvê-las sempre em outros bicicletários, que se encontravam cerca de 300 metros distantes um dos outros.
Obviamente os veículos eram projetados para dificultar o roubo, e eram presas nos estabelecimentos próprios. Sevilha e Barcelona adotaram sistemas semelhantes. Já na Alemanha, o sistema não utilizava bicicletários, sendo as bicicletas rastreadas via satélite e sendo liberadas para o uso mediante um código, com os usuários podem sair e deixá-las em praticamente qualquer espaço público.
Estas são as primeiras iniciativas de uma tendência muito maior: o incentivo ao uso de bikes para transporte urbano. Embora seja um movimento difundido globalmente, grande parte do sucesso dele se concentra na Europa, sendo alguns grandes expoentes as cidades de Amsterdã e Utrecht, na Holanda; Estrasburgo, na França; Copenhague, na Dinamarca; entre outros. Incentivos governamentais para a adoção das magrelas para transporte individual são causa de inúmeras problemáticas, sendo a preocupação ambiental e com a saúde da população as mais difundidas.
Mas não podemos nos esquecer dos inúmeros motivos econômicos, como o abatimento de taxas internacionais para países cumpridores das metas de carbono, a redução com as despesas originadas da manutenção de carros e incidentes ocorridos nas ruas. As cidades mais amigáveis para a adoção do ciclismo como transporte muitas vezes possuem vias e infraestrutura dedicadas às bicicletas, muitas inimagináveis para o imaginário brasileiro. Dentre alguns exemplos, podemos citar quatro pontes exclusivas para ciclistas em Copenhague, o maior estacionamento para bicicletas do mundo em Utrecht, ou mesmo a redução da velocidade máxima dos carros para 30 km/h no centro de Antuérpia, na Bélgica.
Mas algo que todas essas cidades têm em comum, é um sistema de transporte público urbano integrado e eficiente, com altas porcentagens de cobertura territorial, como diz Maria Malatesta em sua tese. Em São Paulo, cidade que este autor possui maior referencial, há uma recente tendência de tornar a cidade mais propícia para o uso de bicicleta, devido aos lotados ônibus, trens e metrôs, e os intermináveis quilômetros de engarrafamento já tão conhecidos da região metropolitana paulista. Porém, com a preferência do conforto dos automóveis pela elite brasileira, assim como o interminável conflito entre motoristas e ciclistas, parece uma meta ainda longe de se encontrar satisfatória.
O cicloativismo de São Paulo luta por melhores condições para seus integrantes, como a presença de bicicletários em todas as estações de transporte público, integração com o bilhete único, sistemas informatizados, entre outros. A pandemia fez muitas pessoas a se voltarem para as bicicletas como atividade física e meio de transporte válido, embora o desrespeito às normas de segurança sanitária sejam comuns também em tais nichos.
Bike, magrela, cleta, bici… Todos apelidos que já foram atribuídos a essa tão importante figura das ruas. Desde Von Drais, até os medalhistas olímpicos da modalidade Omnium no ciclismo de pista… revisitar esta história é perceber como a junção de duas rodas e um pedal marcou a história humana para sempre.
Texto de Miguel Alamino
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